Ilustres amigos e companheiros de viagem pela causa da liberdade religiosa, é uma bênção falar com vocês hoje. Apresento-lhes minhas saudações e meus sinceros agradecimentos por emprestar sua voz a este simpósio.
Atividades acadêmicas, diplomáticas e interreligiosas como as que fazem são um trabalho de amor — amor pela fé, pelo país, pelo diálogo e pela prosperidade humana. A solidariedade que sentimos aqui se estende também à nossa sociedade. O romancista brasileiro Paulo Coelho ecoa esse objetivo: “Somos nós que alimentamos a alma do mundo, e o mundo em que vivemos será melhor ou pior, conforme nos tornemos melhores ou piores. E é aí que entra o poder do amor. Porque quando amamos, sempre nos esforçamos para ser melhores do que somos”. 1
Continuemos nos reunindo e compartilhando boa vontade. Como viemos de origens e crenças diferentes, vemos cada vez mais as facetas da vida. Para sustentar uma sociedade bem-sucedida, precisamos empregar nossos melhores esforços. Nessa empreitada, a liberdade exige sacrifício, a paz envolve luta, o amor exige disciplina.
Ser bons administradores de nossos ecossistemas sociais
É uma alegria estar de volta à minha terra natal. A América Latina é abençoada com paisagens incríveis: densas florestas tropicais repletas de vida; cursos intermináveis de água corrente; vastas planícies verdejantes; costas arenosas tranquilas; calotas brancas de neve no alto das montanhas; abundantes espécies de plantas e animais. Cada árvore, riacho e inseto contribui para o equilíbrio. Deus criou diversos ecossistemas que abençoam e enriquecem a vida humana, mas devemos fazer nossa parte na preservação das maravilhas da criação.
Tal como esse sistema de organismos interdependentes, a sociedade vive e respira em meio a uma diversidade de opiniões, experiências, sentimentos e crenças. Precisamos uns dos outros de inúmeras maneiras — para ouvir, aprender e falar. Assim como o ecossistema biológico é frágil e suscetível ao uso indevido, o ecossistema social se desintegra, se não tivermos equilíbrio em nossas ações. A forma como usamos nossas liberdades e mantemos nossas responsabilidades determina a saúde da Terra e a saúde da sociedade.
Os indivíduos não podem escapar das diferenças humanas na sociedade, assim como os elementos não podem evitar a interação na natureza. A tarefa perene diante de nós é não apenas viver juntos, mas viver bem juntos. O escritor cristão C. S. Lewis escreveu um relato fictício do inferno. Ele imaginou o lugar como uma cidade monótona e extensa, onde almas solitárias vivem a “milhões de quilômetros” umas das outras. “Nada além do vazio cinza acima e abaixo” dessa paisagem urbana. O isolamento sem fim é autoimposto. Essas almas “se espalharão indefinidamente”, afastando-se cada vez mais umas das outras. Os moradores brigam, reclamam e “não precisam” de ninguém. 2 “As portas do inferno”, escreve ele, “estão trancadas por dentro”. 3
Ao contrário, viver plenamente é estar alicerçado em uma rua, um bairro, uma família, um relacionamento, um círculo de amigos e até mesmo em uma fé. Deus criou um habitat para todos os seus filhos morarem juntos, com espaço de sobra. Que sejamos bons administradores desse solo e plantemos todas as coisas boas nele.
As dimensões invisíveis da justiça
Todo mundo nasce com um senso de justiça. Esse instinto concedido por Deus nos ajuda a navegar em meio à crueldade, à opressão e à desigualdade da vida. Houve movimentos em busca de justiça que inspiraram pessoas em todo o mundo. A marcha pelos direitos civis, nos Estados Unidos, foi responsável por fomentar os mais altos ideais dessa nação. A luta contra o apartheid, na África do Sul, criou uma sociedade mais humana e igualitária. A abolição do comércio de escravos, no Império Britânico, influenciou outros movimentos antiescravagistas. A luta contínua pelos direitos indígenas à terra no Brasil e em outras partes da América Latina exige respeito pela conexão agrícola. Esses movimentos e muitos outros promovem e expandem a liberdade.
Mas os movimentos que trazem mudança ao mundo não surgem do nada. Sob o ativismo repousa um alicerce de valores, costumes, sabedorias, tradições, práticas e crenças. Dons que herdamos, dons que moldam nossos horizontes morais. Esse alicerce sustenta as instituições e ideias que dão oxigênio à justiça. As igrejas reúnem as pessoas para discutir as questões atemporais da vida. Rituais cívicos e espirituais dão significado ao nascimento, casamento, morte e sacrifício. As famílias proporcionam às crianças as primeiras lições de amor e cooperação. Professores e alunos vislumbram um futuro melhor. As histórias de superação do sofrimento nos trazem uma lembrança e aspiração comuns. Cada geração deve decidir quais tradições manter e quais modificar. Somente dentro de uma comunidade as transformações da justiça podem criar raízes.
Martin Luther King Jr., um líder dos direitos civis nos Estados Unidos durante o século 20, ensinou que a justiça vem do coletivo, não de apenas um indivíduo. Ele a chamou de comunidade “amada” porque as pessoas têm vínculos de inclusão umas com as outras e praticam o ciclo do amor, da responsabilidade, da empatia e do sacrifício. Essa visão foi alimentada por sua experiência como ministro cristão:
“Mas o fim é a reconciliação; o fim é a redenção; o fim é a criação da comunidade amada. É esse tipo de espírito e esse tipo de amor que pode transformar opositores em amigos. É esse tipo de boa vontade compreensiva que transformará a profunda melancolia da velhice na exuberante alegria da nova era. É esse amor que fará milagres no coração dos homens”. 4
O sofrimento toca a todos nós. Em um momento ou outro, cada um de nós passa por perdas, fracassos, maus-tratos, decepções e desespero. A dor do mundo nos faz nos perguntar quando, ou se, Deus ouvirá nossos clamores. A justiça, portanto, torna-se, em última instância, uma questão de fé. Só podemos esperar e acreditar que o desígnio da criação recompensa o bem em detrimento do mal, estabelece o certo sobre o errado e garante que as regras sejam justas. O abolicionista americano Theodore Parker expressou essa esperança em 1852 com palavras que o Dr. King repetiria posteriormente: “Não pretendo compreender o universo moral, pois sua trajetória é longa e meus olhos alcançam apenas uma pequena parte. Não consigo calcular a curva e completar a figura através da experiência visual; posso intuí-la pela consciência. Mas, pelo que vejo, tenho certeza de que se curva em direção à justiça”. 5
Deus espera que participemos desse desígnio de justiça no árduo trabalho da harmonia. E isso envolve a confusa e bela realidade das pessoas. Por trás de cada movimento de protesto está o apoio de uma mãe, uma promessa a um pai, um compromisso com um amigo, a memória de um antepassado, uma conversa com um pastor ou líder civil, o dever para com uma consciência invisível. Uma comunidade amada é um produto da religião. Nem tudo se trata de libertação, é um sacrifício de si mesmo. Para vivermos juntos em nossas diferenças é preciso humildade, generosidade e uma visão de quem somos como filhos de Deus.
A base das relações na religião
O que aconteceria se todos fizessem o que quisessem e nunca pensassem nos outros? Como seria um mundo em que prevalecem as escolhas individuais? Como uma sociedade voltada apenas a seus próprios interesses sobreviveria? Entre as muitas formas de organização humana, a religião nos dá um senso de responsabilidade uns para com os outros, enquadra nossas lutas dentro de uma história de redenção e nos ajuda a ver nossos semelhantes como almas e não como objetos.
A religião fornece um reservatório moral do qual todos podem beber. Aqui estão alguns exemplos. A fonte da dignidade humana vem de textos sagrados — há passagens da Bíblia hebraica, do Novo Testamento cristão, do Alcorão e dos escritos orientais que testemunham o valor inerente dos seres humanos. A linguagem do direito e da política tem uma entonação moral. Nossa compreensão dos direitos humanos e da liberdade universal decorre de ideais religiosos. Nossos queridos feriados e celebrações coletivas carregam um significado religioso. Por trás do serviço humanitário, muitas vezes está a devoção das congregações. Embora a religião não tenha o monopólio da moralidade, ela fornece um campo de prova incomparável para sermos o melhor que podemos ser.
A fé desafia as tendências da época. O rabino Jonathan Sacks disse que as religiões “agem como uma voz contrária ao canto da sereia de uma cultura que às vezes parece valorizar a si mesma acima das outras, colocar os direitos acima das responsabilidades, receber mais do que dar, consumir mais do que contribuir e buscar sucesso mais do que servir aos outros”. 6
Viver no mundo moderno é estar constantemente distraído com o momento. Mas o fato de pertencermos a uma tradição religiosa nos ajuda a pensar nas contribuições das gerações passadas e inspira nosso coração a viver de acordo com suas memórias. O pensador político britânico Michael Oakeshott expressou como as elevadas aspirações da sociedade dependem da profunda herança religiosa para dar-lhes significado: “Os ideais morais são um sedimento; eles têm significado apenas enquanto estão ligados a uma tradição religiosa ou social, enquanto pertencem a uma vida religiosa ou social”. 7
No final, a justiça tem mais a ver com pessoas do que com ideias. Como seres humanos, estamos naturalmente inseridos em relacionamentos, desde o nascimento até a morte. Quando nos entregamos à solidão, longe de nossas raízes, longe de nossas conexões e convicções, enfraquecemos nossa capacidade de lutar por justiça. Pessoas cercadas de pessoas, buscando um bem comum, é o começo, o meio e a realização de uma sociedade civil.
Para que serve a liberdade religiosa?
Como devemos agir ao vivermos em um lugar onde há grupos de pessoas que variam de católicos a pentecostais, ateus a fundamentalistas, introvertidos a missionários? Ao permitir tantas expressões de crença, a liberdade religiosa pode ampliar o desconforto da diferença, mas também aumenta nossos melhores impulsos humanos. Ela nos liberta para fazer coisas boas:
A liberdade de discordar. A liberdade de compartilhar. A liberdade de adorar. A liberdade de nos reunir. A liberdade de falar. A liberdade de protestar. A liberdade de reformar leis ruins. A liberdade de buscar espiritualidade. A liberdade de mudar de religião. A liberdade de associação. A liberdade de viajar. A liberdade de contribuir para a caridade. A liberdade de orar. A liberdade de ensinar os filhos. A liberdade de acreditar. A liberdade de ir à igreja. A liberdade de manifestar as crenças em público. A liberdade de seguir a voz do nosso coração.
Mas liberdade sem obrigação só pode chegar até certo ponto. Quando se trata de nos relacionarmos com pessoas que tenham ou não alguma religião, a religião nos liberta de nossos desejos egoístas. O evangelho de Jesus Cristo me ensina a ser responsável perante Deus, meus semelhantes e a mim mesmo. Essa obrigação vem em muitas formas e tem pouco a ver com liberdade:
A obrigação de mostrar respeito. A obrigação de ser bem-educado. A obrigação de ouvir. A obrigação de aprender. A obrigação de demonstrar empatia. A obrigação de dar ao oponente o benefício da dúvida. A obrigação de analisar as próprias crenças. A obrigação de apoiar um amigo que é perseguido por causa de sua religião. A obrigação de ser honesto. A obrigação de ser paciente. A obrigação de encontrar o bem em outras religiões. A obrigação de amar o próximo como a si mesmo. A obrigação de estudar a tradição e a história. A obrigação de honrar a lei.
Essas responsabilidades são a conexão que permite que as escolhas tenham um impacto positivo. Quando as duas coisas trabalham juntas, todas as partes da sociedade se beneficiam em uma bela sinergia. O sistema de liberdade religiosa fornece regras básicas para lidar com divergências em ambientes de trabalho, nos permite aliviar o sofrimento, capacita as congregações a ajudar no socorro a desastres, incentiva programas para alimentar os famintos, permite que os líderes da igreja aconselhem os jovens, capacita voluntários profissionais a prover aconselhamento profissional e tratar os viciados, e muitos outros serviços.
A responsabilidade enobrece a liberdade.
Quanto mais generosas forem as leis de liberdade religiosa, mais amplamente a religião terá o poder de realizar boas obras. Essa parceria entre religião e sociedade gera mais paz. O estudioso jurídico da Universidade Yale, Stephen Carter, explica: “Somente a religião possui a majestade, o poder e a linguagem sagrada para ensinar a todos nós, religiosos e seculares, a genuína apreciação mútua sobre a qual uma civilidade bem-sucedida deve se basear”. 8
Os muitos que fluem de um só
Para concluir, quero voltar à analogia das paisagens. O rio Iguaçu corre pelo sul do Brasil até desembocar em um vasto platô. Lá, o maior sistema de cachoeiras do mundo cai das alturas rochosas para criar uma das maravilhas mais impressionantes do mundo. As pessoas vêm de todos os lugares para contemplar sua beleza. Um volume inimaginável de água corre em um único rio e depois se separa para formar centenas de quedas inigualáveis. Esse é um espelho da sociedade humana. Compartilhamos a mesma substância, mas fluímos em nosso próprio caminho, sempre seguindo na direção de Deus. Essas quedas convergem na fronteira entre o Brasil e a Argentina. Aqui, um filme chamado A Missão foi feito décadas atrás. Com base em uma história real, um grupo de padres jesuítas espanhóis viveu em meio à comunidade indígena guarani no século XVIII. Depois de um começo difícil, os dois lados aprenderam a amar-se mutuamente. Quando o comércio português de escravos ameaçou capturar esse povo, os padres resistiram com os guaranis. Embora os exércitos os tenham vencido com facilidade, os católicos e os indígenas sacrificaram a vida uns pelos outros e colocaram a dignidade humana acima de tudo.
Da mesma forma, o mais nobre dos empreendimentos humanos envolve sacrifício e uso de nossa liberdade para ajudar as pessoas ao nosso redor. Seguir a consciência que arde dentro de nós, sempre nos levará a uma comunidade amada.
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Paulo Coelho, O Alquimista, 1988, p. 155.
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C.S. Lewis, O Grande Divórcio, 1946, pp. 21-23.
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C.S. Lewis, O Problema da Dor, 1945, p. 114.
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Martin Luther King Jr., “Facing the Challenge of a New Age”, discurso proferido em 3 de dezembro de 1956.
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Theodore Parker, “Of Justice and the Conscience”, em Ten Sermons of Religion, 1852.
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“Chief Rabbi Lord Sacks on the Role of Religion in Society”, YouTube, 22 de novembro de 2012, discurso
proferido na Câmara dos Lordes Britânica.
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Michael Oakeshott, Rationalism in Politics and Other Essays, 1962, p. 36.
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Stephen L. Carter, Civility: Manners, Morals, and the Etiquette of Democracy, 1998, p. 18.